Despertar, abrir os olhos, vislumbrar o tecto branco, fantasiar nuvens tênues a dançarem dentro do quarto, a cama amarrotada, os sonhos violentos que deixaram o meu corpo quente, sôfrego com a realidade lentamente a sobrepor-se á fantasia, ao êxtase do sonho enquanto as pálpebras despertam. A luz fere o espírito e o Sol despe os lençóis, deixando o corpo a temperar. São 7 e 30, o despertador ainda descansa, combinamos cumprimentarmo-nos às 9. Deixo-o dormir mais um pouco. Nas não resisto e acordo-o para saber tudo o escondeu durante a noite, o quamto o mundo girou, quantos palreiaram sem sentido, sem substância, imbuídos nas suas banalidades, quantos estão acordados, tal como eu, quantos partilharam os meus suados delírios. Quantos partilham os meus pensamentos, sentem o mesmo Sol crescente a retemperar os seus corpos, acordando da ilusão.
A água tépida a adensar-se, a vigorar-se, corre pelo corpo cru, arrancado da pele as fantasias ou os fantasmas da noite anterior, escorrem, debatendo-se, porque não querem ser esquecidas, porque lutam deseperadamente por viverem na minha pele, entranhando-se violentamente na carne. Resticios de sonhos que são estropiados do meu ser, caindo por terra, sendo levados pelo rio do desapontamento, húmus peçonhento que conspurca o sonho, fuliguem, lama putrefacta que desce corrente abaixo. Despertar. Sentir a vida a regressar, o corpo a tilintar, eletrificado, vivo e lavado do negro de uma noite mal dormida, mais uma das muitas que já passaram, sem saudades e sem expectativa, mesmo sabendo que quado a lua regressar, também com a sua luz negra regressam os demônios. Despertar, despertar e despertar. Roupa fresca, lavada, pura, armadura embevecida, reflexo do ego.
Passo ante passo, andamento, reaprender o balanço, manter o equilíbrio sob a circunferência da Terra, ânimo, estímulo, com a luz do dia a degustar demoradamente o meu rosto, saborear com gusto os raios de Sol. Desperto.
Neste hiato tenho o espírito lavado, o corpo restabelecido e o estômago confortado. Os ponteiros saltitam, chamando a si a minha atenção, terá o tempo sido dobrado? O dia nasce, é longo, intenso e promete emoção. Os lábios explodem num sorriso. Os olhos não conseguem conter um brilho, intenso, ardente. Todo o corpo vibra de tensão. Prazer. Desperto.
Manhã agitada, agenda recheada, muita coisa, muita gente, rostos deformados com a velocidade dos ponteiros, alguns olhos brilhantes, outros tantos corpos formosos, tensão, o sangue pulsa vigorosamente, a mente gesticula de prazer numa dança eufórica. O Sol está alto, brilha sobre mim. Retemperar.
Voou, time lapse de eventos, pessoas tantas, pouco conteúdo, rostos amorfos, palavras ocultas. Tenho a boca dormente, a língua cansada e o cérebro implodido, mirrado de tanta falsidade, de tanto fingir ser, viver, de tanta mentira acreditada verdade. Retemperar. Preciso urgentemente de um estimulante, mas para já uma bebida fresca terá de servir. Fresca, para despertar os sentidos, um mergulho vigoroso numa lagoa perdida no bosque, escondida do mundo, protegida por uma neblina cega. Só minha. Para meu prazer, delícia egoísta que não partilho com ninguém. Sabe bem, sinto o corpo a crescer e o espírito a despertar.
Olho em volta, tudo é estranho, feio, putrefacto, janelas escuras, sujas, fachadas cobertas pelo tempo, idosas, decrépitas, de cores indecifráveis, calçada curruspucada, pisada por sombras fugidias, fantasmas numa cidade abandonada, esquecida do mundo, longe da alegria, desprovida de qualquer réstia de brilho ou felicidade. Um negro que consome, absorve-me. Uma nuvem, augúrio de tempestade e pestilência. Não sou daqui, não pertenço, não quero mais, recuso ser transformado numa das tantas sombras que palminhas estes esconços. Quero viver! Quero algo diferente e longe disto, deste cheiro de morte, deste pântano infernal que suga, mastiga e consome tudo, toda a luz, toda a emoção, toda a vida. O fogo a ser soprado por um vento bafiento. Fujo, corro, deseperadamente, desenfreadamente.
Abrir os olhos, escancarar e avidamente procurar. Vou retirar-me, rearmar-me, lavar os olhos, o corpo e a alma. Ânimo, o dia ainda caminha.
Depois de mais um banho, agora breve, para retirar o sarro, diluir as teias dos fantasmas com que esbarrei. Água quente, limpa, branca, lâmina que raspa o musgo morto. Pureza.
A noite aproximar-se suave com promessas de lascívia, ardor quente, com perfumes inebriantes, com corpos femininos que exalam desejo, prazer, tensão e tesão. Dançam os olhares, tiram-se medidas, projetam-se lábios carnudos, arrebitam-se os rabos, retesam os mamilos, sente-se o calor húmido dos sexos, o desejo e a luxúria. A fricção dos corpos eletrifica o ar pesado, o hálito quente e doce inebriante promete orgasmos. Música sincopada, ofegante, mosto doce a correr pela garganta depois de ter beijado secretamente os lábios, olhar vivo, brilhante, libidinoso, concernente aos sentidos, fome, apetite, concupiscência, gozo. Mãos irrequietas, bocas ávidas, ansiedade deliciosa, pernas que resvalam no corpo abrasador a procurar o rubro, delicia-se demoradamente, intensamente, febrilmente. Cantos escuros que ocultam as formas sem conseguir esconder a tesão, o calor exalado, o cheiro lascivo, a sensualidade que transpira. Rebolar pelas paredes, roçar em todas as arestas, acutilante, dormentes. O frio da noite não se sente, os corpos fumegantes, procuram qualquer recanto, as mãos esmagam-se e negam o desprendimento. Luz ambar de um qualquer velho candeeiro mostra os olhos semicerrados, a boca pequena, ávida, tempestiva, cabelo denso, ruivo, chamas, invocação de prazer. Vozes distantes, luzes ténues, cidade ausente. O fogo arde endiabrado, escorre sensualidade, deleite, delícia, gozo. A casa não está distante, voam ébrios de desejo, sedentos, esfomeados de essência, famintos de vida. Todos os passos retemperam o prazer, esfaimados. A porta fechada serve de cama, o corredor, o chão e as paredes de alcova, a roupa rasgada, arrancada pela paixão, os corpos rebolam em todos os sentidos, insurgem-se contra o mobiliario, os sexos negam a separação, rebelam-se, agarram-se ainda mais. Delírio e exaltação, vigor e carnal, os corpos fundem-se, recusam parar, cessar o movimento, o ritmo, de um arfar, de uma palpitação, de um exalar. Ondas violentas, como numa tempestade, mar profundo, tumultuoso, imparável, arrebatado e brutal.
Sinto nos meus lábios o seu travo salgado, delicio-me.