29 março 2010

O Sorriso Invisível


Uma borracha feita de matéria escura, crude negro, que apagou todos os seus sorrisos, conseguiu até deformar a seu rosto, e deixou arestas reticuladas desta matéria a guardar esta porta mágica, nunca mais permitindo que sequer um esgar de felicidade saísse e vislumbrasse a luz do dia, como grifos ferozes que guardam as portas de um templo sagrado, amaldiçoando quem tenta entrar e destruindo quem se atreve a sair.

Somente alguém detentor de um poder tão intenso e um coração tão puro como as claras águas da montanha branca poderiam quebrar aquele feitiço ancestral. Alguém que conseguisse com o poder infinito da luz salvar uma alma tortuosa do seu purgatório, que com um toque terno fosse capaz de lavar a lama que ofuscava o cada vez menor brilho do seu corpo.


Já pouco ou nada importava, o final estava escrito, os sonhos foram cobertos por esfarrapadas asas negras, como a mortalha quente da morte e o seu corpo moribundo estava a ser devorado por um basilisco, numa sala escura sem espelhos que o pudessem salvar. 

Destas cinzas já não deveria crescer nada mais.

Um último e profundo suspiro faltava ser vivido.

14 março 2010

Musa

Ele movia os lábios a tentar formar palavras, frases de amor, cantos de paixão, lirismos da sua saudade, mas o seu corpo estava tão fundo no oceano que tudo o que queria dizer-lhe transformava-se inevitavelmente em infindáveis pequenas bolas de ar, até estas também deixarem de existir.

06 março 2010

Grou


Que linda ave pousa sobre o baixio do lago. Voou uma grande distância, planou sobre todas as cores, percorreu um mundo inteiro, para agora finalmente permitir-se descansar, sobre as negras águas deste tranquilo lago.

As longas pernas cansadas, o corpo açoitado, a asas rígidas e as penas rasgadas, com nódoas no lugar das noutro tempo vivazes cores, uma ave digna do paraíso transmutada num parente enfezado de um qualquer abutre depenado. Uma triste imagem.

Não! Parece responder o grou no seu gesto de erguer o seu longo pescoço, retirando o pálido bico da fresca água.

O cansaço irá voar levemente junto com a aragem tranquila do lago, o pó do corpo será depositado no seu fundo (oferecendo um exótico substrato, oriundo de terras distantes), onde os lotus irão crescer e florir, assim como as cores do arco-íris da sua crista serão restituídas quando o Sol secar as negras águas das suas penas.

Dentro do peito ficaram para sempre as memórias de uma fantástica viagem, histórias para contar e emoções para recordar.


Agora, sem mais demora iria viver outra história, pois o dia já está a nascer...

01 março 2010

Silêncio...

Ficar quieto... 'Stand still' soa melhor!

A solidão está a ganhar terreno, a instalar-se confortavelmente dentro do meu espírito, a invadir-me a mente e até atrevendo-se a falar-me ao ouvido.
A casa está fria a toda e qualquer hora do dia, tudo está no seu lugar,  mas estranhamente, esses lugares sempre parecem desapropriados,  ou erradamente  escolhidos, como naturezas mortas em pastel num infeliz e estéril quarto de hotel. Estão trinta e um graus, mas mesmo assim, parece que consigo ver a condensação do meu expirar, a música soa estranhamente profunda, quase espiritual, consigo ouvir o pesado arfar entre cada nota cantada pela Nina e os instrumento estão imparáveis, não existe silêncio, consigo ver os músicos a moverem-se,  a posição dos seus rostos, o baterista, enquanto roda as escovas, arqueia os braços e respira profundamente. O ajustar do banco, primeiro um salivar, depois o acomodar das mãos ás frias teclas do piano, uma profunda inspiração, para repescar a alma do seu purgatório, para de seguida a expulsar em cada martelar, martirizando-a, amaciando-a até chegar de forma adocicada aos meus ouvidos, sedentos de carinho. É a paisagem perfeita para a voz crua desta mulher grande, cheia, forte e estranhamente sensual, que quase perfura-me os tímpanos, para resgatar a minha alma perdida.

A solidão ainda aqui está, sinto-a a apertar-me o peito, como um torniquete, que impede a música de entrar e a tristeza de sair do meu corpo moribundo.

Tenho a mente vazia, como um caldeirão de ferro forjado deixado demasiado tempo sobre o fogo, os seus líquidos à muito foram sublimados, evaporaram-se e perderam-se na neblina da sala fria, o que restou dissipou-se, deixando um odor ocre, como sangue no palato, metálico, como se conseguisse saborear  o frio aço de uma espada, enquanto esta nos trespassa mortalmente. O caldeirão está vazio, começa a ver-se o rubro das chamas, a dança do fogo, o inferno vive lá dentro, tudo o que cair no seu regaço será destroçado, nunca mais ninguém saberá do seu paradeiro, será lançado no infinito esquecimento.

A negritude dentro do meu espírito quer resgatar a minha alma imortal.

Vou ficar quieto, parado, fazer-me de invisível, deixar que se canse, sugerir-lhe que pode apanhar-me em qualquer outro dia, deixa-lo tornar-se incandescente ao ponto que quando a centelha pura tocar-lhe esta seja estilhaçada e aniquilada  como merece. Mas a minha luz esconde-se, creio que acreditando na nobreza do ser humano, obriga-nos a passar por todas as provas celestiais, para que possamos crescer, aprender e continuar.

Vou ficar quieto, e aprender... Para viver um dia mais, e adiar a minha morte.